O ÚLTIMO FEITIÇO

 

Conto de Clark Ashton Smith

(Tradução: R.  S. de Farias)

Ilustração gerada por IA (Acesse aqui)

 

Malygris, o mago, se encontrava sentado na câmara superior de sua torre, que havia sido erguida sobre uma montanha cônica no coração de Susran, capital de Posseidônis. Forjada de uma escura pedra extraída do fundo da terra, resistente e sólida como um mítico diamante, a torre se destacava das demais, e lançava longe sua sombra sobre os telhados e cúpulas da cidade, de tal forma que o sinistro poder de Malygris estendia sua escuridão sobre a mente dos homens.

 

Malygris já era velho, e toda a funesta força de seus feitiços, todos os horríveis e curiosos demônios sob seu controle, todo o temor que havia forjado nos corações de reis e prelados já não bastavam para aliviar o ominoso tédio de seus dias. Em seu trono, feito a partir do marfim de mastodontes, engastado com terríveis e crípticas runas de turmalina vermelha e cristal azul, olhava melancólico pelo cristal fulvo da janela em forma de losango. Suas brancas sobrancelhas se achavam contraídas em uma só linha sobre o ocre escurecido do pergaminho de seu rosto, e sob elas seus olhos eram frios e verdes como o gelo de antigos tempos; sua barba, metade branca, metade de um negro com glaucos reflexos, caía quase até os joelhos e ocultava sob o manto violáceo.

 

Todos os acessórios de sua arte estavam espalhados ao seu redor: muitos dos símbolos retorcidos e serpentinos, gravados em prata, de sua arte: crânios de homens e monstros, frascos cheios de líquidos negros e ambarinos cujo sacrílego uso só era conhecido por Malygris, pequenos tambores feitos com penas e pele de abutre, e crótalos feitos com ossos e dentes de crocodilo, usados como acompanhamento de certas magias. O piso de mosaico estava parcialmente coberto por peles de grandes símios negros e prateado, e sobre a porta, pendurada, a cabeça de um unicórnio na qual morava o demônio particular de Malygris, na forma de uma víbora verde-pálida com manchas acinzentadas.

 

Os livros se amontoavam por toda parte: antigos volumes encadernados em pele de cobra, com as lombadas comidas por traças, livros que continham o conhecimento aterrorizante da Atlântida; pentáculos que tinham poder sobre os demônios da terra e da lua; feitiços que transmutavam ou desintegravam os elementos e runas em uma linguagem perdida da Hiperbórea, que, quando proferidas no ar, eram mais mortais do que o veneno, ou mais forte do que qualquer filtro.

 

Apesar de essas coisas simbolizarem o poder e o terror que ele possuía sobre as pessoas, despertando a inveja de magos rivais, os pensamentos de Malygris foram ofuscados por tristeza e desânimo absolutos enchendo o seu coração como cinzas de uma fogueira. Ficava imóvel, meditando implacavelmente, enquanto o sol da tarde, caindo sobre a cidade e o mar que ficava mais além da mesma, tocando-o com outoniços raios que atravessavam a janela de vidro verde-amarelo, tocando também em suas mãos enrugadas com o seu fantasmal ouro, incidindo em seus anéis, até fazê-los brilhar como demoníacos olhos.

 

Mas em seus pensamentos não havia luz ou fogo, e desviando-se da escuridão do presente, da escuridão que parecia estar cercando de forma iminente o futuro, ele tateou entre as sombras da memória, como um homem cego que tenha perdido o sol e o buscasse por todos os lugares em vão. E todos as visões do tempo que tinham sido tão cheias de ouro e glória, os dias coloridos de triunfo como uma chama crescente, o carmesim e o púrpura dos brilhantes anos imperiais de seu apogeu, tudo era frio e confuso e estranhamente desbotado, e a lembrança daquilo não era mais que um atiçar de brasas quase extintas. Em seguida, Malygris voltou aos anos de juventude, aos brumosos, remotos e incríveis anos nos quais, como uma estranha estrela, uma lembrança especial ardia com inesgotável brilho a recordação de Nylissa, a quem havia amado em outros tempos antes da ânsia pelo conhecimento proibido e necromântico domínio houvesse entrado em sua alma.

 

Havia quase esquecido Nylissa durante décadas, com a miríade de preocupações de uma vida tão estranhamente diversificada, tão repleta de ocultos sucessos e poderes, de sobrenaturais vitórias e perigos; mas naquele instante, só pensava naquela esbelta e cândida garota, que tanto ele amara quando também era jovem, magro e inocente, garota que havia sido morta por uma misteriosa e repentina febre na véspera de seu noivado com ele. O velho ocre escuro de sua face adotou um rubor fantasmal, e no mais fundo de seus gélidos mundos internos apareceu um brilho como o resplendor de círios mortuários.

 

Em sua imaginação se elevaram os irrecuperáveis sóis da juventude, e viu Meros, o vale coberto de mirtos, e o rio Zemander, em cujas margens verdejantes havia caminhado com Nylissa ao entardecer, contemplando o nascimento de estivais estrelas no céu, refletidas na superfície das águas e nos olhos de sua amada.

 

Em seguida, dirigindo-se ao demônio-víbora que morava na cabeça do unicórnio, Malygris disse, com a baixa e monótona entonação de quem pensa em voz alta:

 

─ Víbora, nos anos anteriores em que vieste morar comigo e estabeleceste a tua casa na cabeça do unicórnio, eu conheci uma garota que era adorável e frágil como as orquídeas selvagens, e que morreu como morrem as orquídeas... Víbora, acaso não sou Malygris, em quem se concentra a maestria de toda tradição oculta, toda dominação proibida, com potestade sobre os espíritos da terra, do mar e do ar, sobre os demônios solares e lunares, sobre os vivos e os mortos? Se assim o desejo, talvez eu possa chamar Nylissa com a mesma aparência de toda sua juventude e beleza, e trazê-la das imutáveis sombras do túmulo, para que se erga diante de mim nesta câmara, sob o crepúsculo deste outoniço sol?

 

─ Sim, amo  confirmou a víbora, com um baixo, porém singularmente penetrante sibilo – tu és Malygris, e todo poder mágico e necromântico é teu, todos os feitiços e conjurações e pentáculos são conhecidos por ti. É possível, sim, se assim o desejas, invocar a garota Nylissa desde sua morada entre os mortos, e contemplá-la outra vez como era antes que sua formosura houvesse conhecido o rapace beijo do verme.

 

─ Víbora, é bom, é conveniente, que eu a invoque de tal maneira?...Não há nada a perder, nada a lamentar?

 

A víbora parecia hesitar. Então, com um sibilo lento e medido, ela respondeu:

 

─ É conveniente para Malygris fazer o que deseja. Quem, exceto Malygris, pode decidir se algo é certo ou errado?

 

─ Em outras palavras, não me aconselhas? ─ a questão era tanto uma afirmação como uma pergunta, e a víbora não se dignou a dizer mais nada.

 

Malygris ponderou por algum tempo, com o queixo nas mãos nodosas. Então ele se ergueu, com velocidade e segurança de movimentos que desmentia suas rugas, e reuniu, a partir de diferentes cantos da câmara, estantes de ébanos, caixões com fechaduras de ouro ou bronze, os diversos acessórios que eram necessários para sua magia. Traçou sobre o chão os círculos, e de pé no centro acendeu os turíbulos que continham o incenso prescrito, e leu em voz alta um longo pergaminho cinzento com runas púrpuras e vermelhas que serviam para invocar os mortos. A fumaça dos incensários, azuis, brancas e violetas, se ergueram em espessas nuvens e rapidamente encheu a sala de redemoinhos em constante mistura, entre as quais a luz solar desaparecia deixando lugar a um fulgor pálido e sobrenatural, como a luz das luas que ascendem do rio Leteo.

 

Com sobrenatural lentidão, com inumana solenidade, a voz do necromante seguiu entoando um sacerdotal cântico até que houvesse terminado o pergaminho e os últimos ecos se apagaram extinguindo-se em formas de cavernosas e sepulcrais vibrações. Logo a fumaça policromática se dissipou como as dobras de uma cortina que houvesse sido retirada. Mas o desbotado e sobrenatural brilho enchia a câmara, e entre Malygris e a porta onde brilhava a cabeça de unicórnio se alçava a aparição de Nylissa, tal como era em anos passados, inclinando-se um pouco como uma flor ao vento, e sorrindo com a vivacidade descuidada da juventude.

 

Frágil, pálida e vestida de forma simples, com flores de anêmona em seu negro cabelo, com olhos que possuíam o renascido azul celeste de céus primaveris, era tudo o que Malygris havia lembrado, e seu indolente coração bateu forte com uma antiga e deleitosa febre ao vê-la.

 

─És Nylissa?  perguntou.  A Nylissa a quem amei em Meros, o vale sombreado de mirtos, nos áureos dias que se foram com todas as mortas eras para o abismo intemporal?

 

─Sim, sou Nylissa  sua voz era o simples murmúrio de prata que havia soado tanto tempo em sua lembrança...

 

Porém de algum modo, enquanto a contemplava e a escutava, cresceu uma pequena dúvida... uma dúvida não menos absurda do que insuportável, contudo insistente: era esta por inteiro a mesma Nylissa que havia conhecido? Acaso não havia uma intangível mudança, demasiado sutil para ser notado ou definido, não havia algo sido levado pelo tempo e pela cova... algo inominável que a magia não tinha totalmente restaurado? Eram os olhos tão ternos, era o negro cabelo tão lustroso, a figura tão esbelta e ágil, como os da amada que ele recordava?

 

Não podia estar seguro, e a crescente dúvida foi seguida de um desânimo e de uma tristeza, uma decepção cruel que sufocava o seu coração como que com cinzas. Seu raciocínio se tornou penetrante, exigente e cruel, e por momentos o fantasma deixava cada vez mais de ser o retrato perfeito de Nylissa, por momentos os lábios e a fronte se tornaram menos atraentes, menos delicados em suas curvas; a esbelta figura foi ficando magra, a cabeleira tomou uma cor escura e vulgar e o pescoço uma medíocre palidez.

 

A alma de Malygris se abismou novamente na velhice e no desespero com a morte de seu sonho fugaz. Não podia mais crer no amor, na juventude e na beleza, e até mesmo a memória de tais coisas era uma miragem hesitante, algo que poderia ou não ter existido. Não restava mais nada além de sombra e pó, escuridão vazia e frieza, e o opressivo peso de uma melancolia insuportável, uma angústia incurável.

 

Com uma voz que era suave e trêmula, como o espectro de sua voz anterior, pronunciou o encantamento que servia para despedir a um fantasma invocado. A forma de Nylissa se dissolveu no ar como uma fumaça e o brilho lunar que a havia rodeado foi substituído pelos últimos raios de sol. Malygris se voltou até a víbora e lhe disse num tom de reprovação melancólica:

 

─Por que não me avisaste?

 

─Será que te serviria o aviso? ─ foi a contra-pergunta. Todo o conhecimento era teu, Malygris, exceto uma coisa; e de nenhuma outra forma poderias ter aprendido. 

 Que coisa?  perguntou o mago.  Eu não aprendi nada, exceto a vaidade da sabedoria, a impotência da magia, a nulidade do amor e o engano da memória... Diga-me, porque eu não poderia trazer de volta à vida a mesma Nylissa a quem eu conheci, ou acreditava conhecer?

 

 Era certamente Nylissa que invocaste e viste  respondeu a víbora.  Tua necromancia era bastante poderosa para isto: mas nenhum feitiço necromântico poderia trazer de volta tua própria juventude perdida no sincero e ingênuo coração que amou a Nylissa, nem os apaixonados olhos que a contemplaram então. Isto, meu amo e senhor, era o que tinhas que aprender.

FIM

Esta tradução foi feita sem fins ou objetivos comerciais, por um tradutor amador, apenas com o escopo único de divulgação no Brasil da obra de Clark Ashton Smith. É uma tradução feita por um tradutor amador e de um fã da obra monumental de  Clark Ashton Smith, aqui em nosso país.A tradução foi feita de modo indireto, ou seja, foi feita não totalmente do original em inglês, mas de uma tradução em espanhol; usamos, na verdade, aquilo que denominamos “tradução mista”, ou seja, alguns trechos do original em inglês e da tradução em espanhol do conto de Smith.



 

 

 

 




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