O ENIGMA DA BORBOLETA DOURADA

Conto de R. S. de Farias

Ilustração gerada por inteligência artificial



Chamo-me Desmond L. Hellstorm, passo a narrar agora o que aconteceu comigo em certa tarde de sábado. Morava no segundo andar de um prédio nos subúrbios de Londres, e naquele dia deitara-me na cama, que ficava bem ao lado da janela, cujo vidro estava entreaberto. Sou um amanuense de uma pequena firma à beira do Tâmisa, mas nesse dia em particular estava de folga e predisposto a usufruir da bem-aventurança do ócio em toda a sua plenitude mágica.

O sol entrava quarto adentro como um fantasma dourado invasor. Era depois do almoço e eu fazia uma espécie de “siesta”. Era um dia de esplendor magnífico. Um belo dia para viver, um belo dia para morrer, pensava com meus botões.

Deitei-me de lado. Precipitei-me numa modorra, depois numa espécie de nada confuso. É uma delícia poder vadiar desse jeito, sem fazer droga nenhuma! Pensava: morrer deve ser algo assim, uma delícia de nada, de vazio caótico. Passa-se! Atravessa-se uma ponte invisível! Atravessa-se para o mistério do outro lado! Morrer deve ser como dormir sem preocupações para acordar sob uma nova aurora de sonhos e desejos talvez um pouco mais altaneiros.

De repente aconteceu uma coisa incrível, uma coisa que só acontece nos filmes, livros ou numa mente delirante. Era uma verdadeira “coisa de louco”. Mas... Não são as coisas de louco as mais interessantes?

Foi isso que aconteceu comigo: acordei-me naquilo que eu chamaria de “descoincidência de corpos”. Isto é, aquilo que parecia ser o meu corpo espiritual dissociava-se do corpo material.

Era, pois, uma dessas coisas delirantes que chamam de projeção astral.

A primeira que eu fazia, e isto em pleno dia!

E fazer projeção astral em pleno dia significava, pelo menos para mim, projeção sem medos, porque de noite todos os demônios são negros e eu ainda tenho medo do escuro!...A criança em mim ainda tem medo do escuro! E o escuro no mais das vezes sou eu ou o adulto que insiste morar em mim.

Sempre sonhei em fazer uma projeção astral durante o dia. Posso assegurar o seguinte: é uma das maiores delícias da vida, uma benção fantástica!...Uma sensação de liberdade plena, de alegria, de infinita felicidade, de aventura amalucada, de vida vagabunda sem liames com qualquer maldita responsabilidade carnal, um sonhar em vida pelos doces mares da eternidade.

A vida no lado de lá próximo à crosta terrestre é, pelo menos em alguns rincões, bem parecida com a da Terra, porém se tem a certeza total de que a vida física na Terra é ridícula de tão infeliz que é! Como pode alguém ser feliz num mundo onde Saturno nos devora, onde o Tempo nos mastiga para cuspir no túmulo? É o mundo físico que copia a Vida Verdadeira, e copia de maneira ridícula; é uma cópia mal feita a vida no mundo material, eu diria!

Mas o que nos prende a vida física? O desejo de acerto de contas e o balançar maluco da cauda do dragão do desejo sôfrego de criar na matéria, para o bem ou para o mal?

Voei por entre nuvens brancas, depois baixei e passei rente sobre um mar azul e calmo. Sobrevoei aquilo que parecia ser a contraparte astral da cidade onde moro. Algumas diferenças aqui e acolá, mas no geral todos aparentemente vivem felizes, como sóis ou anjos resplandecentes e vagabundos. Quando digo a maioria, são os mortos, as entidades não-humanas, angelicais e também os humanos que fazem projeções astrais de dia. Nós, os vivos, costumamos ir para aquela duplicata astral de cidade durante a noite quando dormimos, mas nem todos. Acho. Quando é dia na Terra, nos mundos desconhecidos é primavera; quando é noite aqui no mundo da carne e do sangue, lá é um minuto de silêncio.

Durante a viagem flutuei até o que parecia ser uma praça onde havia alguém muito parecido com um amiguinho de infância que tive. Vamos chamá-lo de Emanuel. Estava brincando com uma bola transparente. Parecia mais uma grande bolha de sabão.

Logo ele me reconheceu, e eu a ele, claro. Nos jardins dourados da infância, existem amigos de verdade que a gente nunca esquece. Emanuel tinha sido, na Terra, atropelado por um motorista bêbado filhinho de papai ( filho de um ex-prefeito corrupto da cidade). A cabeça do menino Emanuel tinha sido esmagada junto com seus sonhos e seu coração, e foi com 7 aninhos que ele se despediu deste mundo sujo, infeliz , caótico e podre: a Terra em sua versão material e física!

- Que prazer em te ver, amigo! – disse Emanuel sorrindo. – Ainda não saíste de lá? Volte logo!

O “lá” que ele dissera se referia ao nosso mundo material, a Terra, óbvio.

Uma espécie de timidez ou ligeiro medo em estar conversando com um “morto” e logo saí voando dali, como um super-homem espiritual!...E de fato foi pensar nisso e se materializou no meu corpo astral uma cópia de um uniforme azul e vermelho de super-herói.

Enquanto voava meditei sobre o fracasso total que eu tinha sido até então na Terra. Supliquei ao meu inconsciente ou a todos os deuses que me dessem uma resposta para a questão essencial que afligia meu eu: como ser feliz num mundo miserável onde aparentemente a solução para tudo jaz na morte; os dias no mundo eram como um batalhar em arenas, onde temos de ser gladiadores e leões ao mesmo tempo, mas no final pouco adianta porque todos somos devorados.

Nisso, como se fosse uma resposta, todo o panorama mudou e eu fui sobrevoar uma espécie de cidade de pequenos homens. Era como a terra do Gulliver! Uma Liliput astral. As pessoas daquele lugar eram gnomos, mas gnomos vestidos com roupas comuns ao século vinte ou pelo menos com certa semelhança. Todos estavam felizes em seu trabalho, que consistia em energizar as coisas ou algo semelhante a moléculas; energizavam enquanto caminhavam de um lado para o outro sem preocupação alguma.

Um dos gnomos me gritou:

- A felicidade é o agora, respire o perfume da eternidade no eterno presente. Criar superando-se a si mesmo, eis o seu melhor trabalho e sua maior vocação. Teste-se, a força se consegue quando se está no centro, isolado, mas ao mesmo tempo acompanhado de multidões. O universo e a própria vida se coça com prazer quando o homem aceita a vida como um de vários caminhos. O enigma da vida é solucionado quando o homem aprende a voar sem asas, ou melhor, com as asas de seu sonhar.

Nisso, voltei repentinamente ao corpo físico. Uma borboletinha dourada havia passado pela janela e pousado sobre o meu nariz, acordando-me com o roçar de suas patinhas ou anteninhas, sei lá. Que mistério aquela verdadeira áurea rosa alada trazia? Qual o enigma da borboleta cor de ouro? Ela saiu do meu nariz e voltou para a rua, atravessando a janela. Fui até a janela, o dia estava lindo como o sorriso de uma criança. Céu azul sem nuvens. A vida agora tinha outra cor. A vida é como uma borboleta: voa, pousa em nós e faz-nos cócegas na alma quando acordamos inteiramente felizes! A vida quer nos ensinar a brincar. A Vida, a Vida Maior, é a borboleta dourada que pousa em nós quando estamos tristes. A borboleta pousa na flor. A rosa tem perfume, mas espinhos também. Toda alma é uma rosa. A Vida Verdadeira é a vida tornada ouro. Eis que decifrara o enigma da borboleta dourada! 


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