MEU NOME É MORTE

Conto de Rogério S. de Farias

Ilustração gerada por IA (fonte)

Olhei, e diante de mim estava um cavalo amarelo. Seu cavaleiro chamava-se Morte, e o Hades o seguia de perto. Foi-lhes dado poder sobre um quarto da terra para matar pela espada, pela fome, por pragas e por meio dos animais selvagens da terra.

APOCALIPSE 6:8

 

1.

A mensagem do espírito Thamerglodes

Este é o estranho e funéreo relato “recebido” por um “médium” numa sessão espírita lutuosa nos paupérrimos e sombrios subúrbios da velha Londres de 1950. Com efeito, foi o misterioso “médium” Jules Leófitas o “aparelho” que a recebeu. Foi esse distinto cavalheiro quem psicografou o relato infernal.

Meu velho amigo italiano Di Almmo, professor e estudioso do ocultismo, que na época estudava parapsicologia comigo em Brighton, foi quem me contou a história, que agora repasso aqui aos meus leitores.

O espírito chamado Thamerglodes, incorporado em Jules Leófitas, contou esta estranha história…

2.

Sombras em Londres

Dennis não gostava de Natal. Detestava-o. E ali estava ele, ao crepúsculo, com um revólver na mão, prestes a matar uma família feliz. Um policial sorridente terminara mais um dia de trabalho nas ruas de Londres. Agora ele vinha com a mulher e o filhinho. Os dois últimos com pacotes de presentes nas mãos.

– Vai ser uma festa de Natal e tanto, papai!… – disse o menino.

– Sim, Johnny, o seu, sua mãe está com ele nos braços, mas é surpresa e só em casa você saberá o que é!

– O seu também está aqui, papai. E é surpresa, também… – disse o filho.

– E o meu, seus egoístas incorrigíveis? – perguntou a mulher, rindo.

– O seu eu o comprei ontem, já está em nosso maravilhoso lar. Você vai adorar, querida! – disse o policial, sorrindo.

O Big Ben logo marcaria sete da noite. Uma névoa aziaga começava a pairar sobre Londres, e tudo conspirava para a morte!

Dennis, o psicopata, não gostava de Natal, porque o Natal o lembrava de que fora uma criança pobre e maltratada que aprendera muito cedo a não acreditar em felicidade ou em Papai Noel. Aprendeu a odiar tudo e todos, com a força do veneno negro em seu coração latejante de ódio contra a sociedade londrina. Aprendeu a odiar as pessoas felizes, como aquele policial logo ali adiante, com sua esposa e filhinho.

“Vou mandar esses três idiotas para o quinto dos infernos! Vão passar o maldito Natal no fundo de uma cova!”, disse o bandido, e logo em seguida atirando nos três que caíram como animais abatidos por um caçador cruel.

E assim Dennis fugiu, deixando atrás de si três cadáveres de inocentes em meio a poças de sangue, caídos ali no chão.

Não, Dennis não sabia por que fizera aquilo. Não sabia por que sentia a velha compulsão de matar que predominava em sua mente cheia de ódio, uma mente de psicopata e bandido. Ou será que sabia, mas fingia para si mesmo não saber, numa fingida ignorância que era, para si e para os tolos, um álibi perfeito?

Dennis, o famigerado “atirador de Londres” como estampava nas páginas principais os principais tabloides londrinos, era procurado pela polícia, mas por que Dennis via em cada policial um inimigo a ser destruído?

Dennis era louco? A Scotland Yard acreditava que não era um louco, mas um bandido cruel!

Talvez Dennis odiasse o Natal, porque se sentida mais irritadiço nessa época do ano, porque não tolerava ver ninguém feliz, no Natal, nesta data onde os corações se tornam crianças e todos se desarmam e tudo parece feliz, feliz.

“Droga! Estou cansado! Os malditos tiras, eu os odeio! São cães amestrados e fardados do Estado. A essa hora esses porcos da Lei devem estar me caçando por toda a Londres! Afinal, matei mais um deles!”, pensava Dennis enquanto fugia pelas sombras das ruelas e becos imundos da cidade. “Preciso fugir, encontrar um lugar para me esconder, descansar um pouco…”

Homiziou-se numa espécie de quase beco, onde a rua terminava num muro alto, atrás de algumas grandes latas de lixo.

Não demorou muito para que os policiais o avistassem.

– Lá está o bastardo! É o Dennis, vamos pegá-lo! Esse maldito matou vários de nossos colegas! Vamos encurralá-lo, está lá, perto daquelas latas de lixo!

Rapidamente Dennis saltou um muro alto, com agilidade de uma pantera assassina perseguida por caçadores.

Um dos policiais falou:

– Maldição! Perdemos o miserável de vista! Pulou o muro “como um gato”, mas ele parece mais é com um demônio da noite!

3.

Naquela casa abandonada

Dennis era barbudo e cabeludo, parecia um andarilho louco, um mendigo malvado. Seus cabelos eram cor de milho, mas sua alma era da cor do lixo das fossas do inferno, ou seja, escura. Era Dennis, e ele estava parado diante da velha casa abandonada.

Era noite. Havia uma lua cheia no céu, que mais parecia um olho de um gigante caolho olhando a louca humanidade. O luar espalhava tons macabros de luz mortiça sobre a casa e o lugar.

Árvores secas ao lado e na parte de trás da moradia mais pareciam espectros esqueléticos paralisados pela penumbra da noite fria e sem ventos de Londres. A casa mais parecia um pardieiro grande.

Dennis, o bandido solitário, observava a velha casa. Logo, ele acabou entrando na casa sinistra. Foi fácil entrar, a porta estava apenas encostada e apenas fez um rangido nas dobradiças. Com seu isqueiro, Dennis foi iluminando precariamente o interior um tanto escuro, apesar de que raios de luar se infiltravam pelas vidraças quebradas. Havia teias de aranha, poeira e a catinga da passagem dos anos. Dennis acendeu seu cigarro tranquilamente. Fumou.

Iluminou com a pequena chama do isqueiro a escada que levava ao andar de cima. Talvez um sótão houvesse lá no alto. Talvez Dennis pudesse se esconder e descansar por ali. Talvez houvesse algo de valor perdida ou escondida por lá…Talvez, talvez, talvez…o mundo , para Dennis, era uma avalanche de possibilidades.

De repente aconteceu algo que deixou Dennis assustado. Escutara um barulho. Arregalou os olhos, um frio na espinha. Criminosos também sentem medo, muito medo! Medo de tudo, menos medo de si mesmo!

Arregalara tanto os olhos que pensou que talvez eles saltassem das órbitas como duas pequenas bolas de pingue-pongue ou pequenos frutos grotescos e macabros.

“Maldição do inferno!”, rosnou pensativamente o Dennis. “Mas eu pensei que esta maldita casa estivesse abandonada! Pelo visto, tem gente nessa casa, vou ter companhia, será?”

Devagar Dennis subiu a escada. Numa das mãos o isqueiro, aceso; na outra mão, o revólver engatilhado!

“Espero que seja só um bêbado que tenha resolvido passar a noite aqui nesta casa dos infernos!”, matutou Dennis.

Diante da porta, Dennis guardou o isqueiro, mas o revólver continuava em riste. Uma estranha luz escoava lânguida pela fresta debaixo da porta. Sim, dava para ver que havia luz lá dentro, naquele aposento.

Dennis preparava-se para a ação. Havia alguém lá dentro. Ele então colocou a mão na maçaneta e foi girando devagar. A porta rangeu vagarosamente.

A estranha luz do quarto iluminou o rosto de Dennis. Uma voz, soando como um sussurro distante, se pronunciou, de forma lânguida:

– Seja bem-vindo, Dennis. Esperava por você. Eu sinceramente lhe digo que achava que você não viria mais.

4.

A pálida beldade vestida de negro

A mulher estava vestida com uma espécie de penhoar negro muito insinuante. Era uma mulher linda. Sensual. A pele lívida como a de um cadáver. Dennis ficou “louco” por aquela pálida beldade vestida de negro.

– Esperava por mim, boneca? Mas eu não a conheço! Me diga: o que faz uma mulher deliciosa como você, aqui, nessa casa velha abandonada?

Ela, a mulher de preto, estava deitada numa cama, em posição lasciva. O quarto era iluminado por estranhos castiçais com velas mais estranhas ainda.

– Dennis, você continua o mesmo, hein?

– Como sabe o meu nome, piranha? – rosnou Dennis.

– A onisciência é um dos meus dons.

– Qual o seu nome, maldita vagabunda? – de novo Dennis rosnou.

A moça de pele pálida começou a sorrir. Estaria caçoando de Dennis?

– Vadia! Por que ri de mim? Você me lembra duma prostituta que esfaqueei em Devon. Bem parecida, sem dúvida. Já que não quer me dizer seu nome, vou chamá-la com o nome daquela cadela de Devon. “Sonja”.

– Você e suas loucuras, Dennis.

– Sonja, você ainda não me convenceu. O que faz, aqui, mulher? Por que disse que me esperava?

– Na verdade, Dennis, nós o esperávamos.

– Nós quem, Sonja? Desembuche! Diga-me e talvez eu te poupe e apenas te estupre, não te matando!

– Nós, Dennis… – agora não era a voz sussurrante de Sonja, eram outras vozes, muito mais sinistras e tão estranhas quanto à de Sonja.

Então Dennis olhou para trás e viu. Ali estavam eles.

Eram fantasmas. Espíritos. Os espectros das últimas três vítimas de Dennis. Aquele policial, seu filhinho e sua esposa. Estavam envoltos em uma luz mística, fosforescente. Eram como que corpos transparentes. Eram corpos astrais!

– Nós queremos que você, Dennis, tenha um feliz Natal, o primeiro de sua miserável vida…Nós, os espíritos, sabemos que foi o Natal que o levou a odiar e matar dessa maneira. Achamos que você merece um presente, Dennis. Um presente que seja a luz libertadora de seus crimes, de sua dores…

Dennis olhou um dos espectros. Havia a marca da bala que trespassara a cabeça. Era a mulher, a mulher do tira!

Os espectros da casa maldita continuaram:

– …Algo que dê a você, Dennis, um pouco de paz, a paz dos mortos, Dennis, para você e o mundo que o cerca, Dennis…

Dennis venceu o medo e, irritado, berrou raivosamente, atirando contra os fantasmas. Mas – óbvio! – balas não podem matar o que já está morto! Os tiros passaram através do corpo astral do trio de mortos, aqueles seres transparentes e espectrais.

– Malditos! Tomem chumbo nas tripas, cães do inferno!

– Você não pode nos matar, Dennis. Não pode nos matar de novo. É tolice tentar matar almas. Estamos mortos, e em breve você estará também, Dennis.

Nesse instante, Dennis virou-se para falar com Sonja. Mas Sonja não mais estava ali. Em seu lugar estava um vulto aterrador. Um espectro mais alto, vestido com uma túnica negra, segurando um alfanje ou grande foice cuja lâmina rutilava, aziaga. Era a personificação da Morte!

– Este será teu presente de Natal, Dennis! – disse a Morte, sua voz era como a voz de legiões de mortos em romaria pelo inferno. – O único que tu receberás em vida…um pouco de paz, Dennis. A paz que tu negaste às tuas vítimas, a paz que não tivestes em vidas, mas que terás na morte!

– Diabos! Que loucura é essa? – foram as últimas palavras que saíram da garganta de Dennis antes dela ser cortada pela gélida lâmina da foice, sua cabeça separando-se do corpo, os olhos esgazeados fitando a eternidade.

– É a paz, Dennis, a paz que tanto necessitas…A paz, para ti e para todas os inocentes que matastes. Descansa em paz, Dennis, na morte, como tuas vítimas!

5.

O que disse o relatório da Scotland Yard

A Scotland Yard concluiu seu relatório.

Era um caso estranho. Pouca coisa ficou clara. O fato é que as autoridades ficaram contentes em ver que a carreira criminosa de Dennis havia se encerrado diante do mais cruel de todos os verdugos e justiceiros, a Morte!

O corpo de Dennis foi encontrado pelos policiais no andar de baixo da casa, perto da escada. Sua cabeça decapitada no chão parecia fitar o horror da eternidade. Foi escrito no relatório que Dennis por certo sofrera uma acidente durante a fuga da justiça. Foi encontrado uma foice.

A foice quem degolara Dennis acidentalmente. Devia estar pendurada no alto da escada em algum ponto da madeira podre e toda instável da casa, caindo sobre Dennis no momento em que ele pisara no primeiro degrau da escada na casa imersa na escuridão, decapitando-o.

A Scotland Yard considerou o caso elucidado. Dennis foi enterrado como indigente em uma sepultura de um cemitério qualquer num bairro de proletários, nos arredores de Londres.

Nota do autor: Este foi um dos primeiros contos escrito na vida deste autor catarinense de literatura fantástica. Escreveu-o em tenra idade, aos 15 ou 18 anos, guardando o manuscrito durante anos, datilografando longo tempo depois,  inaugurando assim sua máquina de escrever Olivetti, que ganhara de presente no Natal. Tnha certo pejo de mostrar seus escritos tenebrosos e insólitos aos outros, guardava-os, macambúzio, na gaveta da escrivaninha em seu pequeno gabinete de criação literária, localizado num diminuto sótão da velha e humilde casa onde então ele morava com os pais (esta casa já não existe mais, pelo menos não nesta dimensão!). Mais tarde, aos 20 anos, o autor publicava uma versão resumida deste relato em forma de roteiro, adaptando a história para uma revista de histórias em quadrinhos. Este conto faz parte de sua “Juvenília Fantástica”, obra ainda inédita; essa juvenília é uma coletânea de vários contos de horror, fantasia e ficção científica, rascunhados em sua juventude num grande caderno, com algumas curiosidades nesses primeiros textos ainda não  datilografados ou digitados do autor: em cada início de conto há uma epígrafe com trechos da Bíblia, e quase todas as histórias se passam em cidades da Inglaterra, reais ou fictícias.

 

 

 


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