NUNCA FURTE O CORAÇÃO DE UM CADÁVER

Conto de Rogério S. de Farias

Ilustração gerada por IA (fonte: clique aqui)

 

O homem negro e magro atravessara ofegante o matagal, segurando um lampião numa das mãos e um encardido saco de aniagem pendurado num dos ombros.  A silhueta do homem negro parecia a de um ogro esquálido egresso das sombras de um mundo ignoto. Tossia forte como um tísico sob o vento sul gélido de uma noite de agosto, nas várzeas próximas ao Pântano da Coruja Corcunda, na estranha e sombria cidade de Maremontes.

Ele se chamava Ambrósio Quaresma e era um aprendiz de macumbeiro, um neófito ou diletante de certas forças negativas da quimbanda, acólito novato de Exu Tranca-Ruas, o Senhor de Mbaré − a entidade sombria e poderosa que pode abrir as portas do céu, da terra... e do inferno!

Logo Ambrósio Quaresma, o homem negro, estaria lá, no velho cemitério que ficava no alto do Morro do Diabo Manco.

Seus passos soavam lépidos. Enveredou então pela encosta, desviando de matacões e galhos secos.

A noite estava escura como o fundo de uma cova quando Ambrósio Quaresma abriu o portão enferrujado da velha necrópole. A dobradiça rangeu forte e alto.

Devia faltar pouco para a meia-noite quando Ambrósio Quaresma finalmente entrou na cidade dos mortos.

O piar de corujas e curiangos ressoou nas trevas aziagas e funéreas. Nas sombras da noite fria os grilos e sapos entoavam seus sons em louvor às blasfêmias do inferno

No cemitério, o negro Ambrósio Quaresma observou perquiridoramente as lápides antigas e os túmulos seculares, as tumbas carcomidas e as cruzes arruinadas, os jazigos cobertos de musgo e os mausoléus cheios de teias de aranha e heras.

De lá do brejo bem abaixo do outeiro e da necrópole lúgubre, subia um fedor mefítico e morno que fervilhava no ar e se misturava com as emanações miasmáticas das criptas e dos sepulcros antigos, formando uma mixórdia de cheiros arcaicos, nauseabundos e macabros.

Morcegos voavam ligeiros e frenéticos, em revoadas vampirescas e estridulantes, como diminutos demônios alados adoradores das noites sinistras e metuendas.

Ambrósio Quaresma atirou o saco cheio de ferramentas ao chão, pendurando o lampião num galho de cipreste, de modo que o facho de luz iluminasse em cheio o túmulo antigo a ser violado. Arrancar o coração de um morto e torrá-lo em oferenda ao poderoso Exu Tranca-Ruas seria sua iniciação nos mistérios maiores da macumbaria negra, bem como o ingrediente necessário para um despacho sinistro que faria com que entrasse mais dinheiro em sua vida miserável.

Do velho saco de aniagem ele retirou uma pá, uma picareta e um pé-de-cabra.

Escolheu o túmulo. A lápide estava meio apagada e com um pouco de musgo, mas deu para ver o nome do morto: “Aqui jaz Zélio Silva das Cruzes”. Por um instante Ambrósio Quaresma sentiu que já ouvira falar daquele nome, mas logo se distraiu de suas lembranças, pois havia um trabalho inominável e macabro a ser feito.

Trabalhou até meia-noite e por fim abriu a sepultura e a tampa do caixão. O cadáver meio mirrado estava ali, diante de seus olhos esbugalhados e ansiosos, um corpo onde os vermes roíam as carnes pútridas e fétidas sem cessar. As roupas do defunto eram antigas e estranhas, estavam apodrecidas, mas dava para perceber que eram de uma cor escura como devem ser as noites do inferno. A caveira do morto parecia sorrir malevolamente – parecia um ríctus de escárnio e sarcasmo ante a absurda condição dos vivos.

Ambrósio trabalhou rápido. Arrancou algo medonho do peito do morto. Era o coração seco e podre do velho defunto no qual um punhado de vermes pululava num banquete macabro. Colocou o órgão apodrecido dentro do bolso interno do casaco. Depois retirou de outro bolso interno uma garrafinha com conhaque vagabundo, sorvendo alguns goles no gargalo.

- Ah! – fez ele, estalando a língua e pigarreando alto – Isto levanta até defunto! Vai me animar e me esquentar um pouco, pois estou exausto de tanto cavar aqui neste frio cemitério de desgraçados!

Pegou o lampião do galho do cipreste, depois de colocar as ferramentas dentro do saco e colocá-lo num dos ombros.

Saiu do cemitério que ficava no alto do Morro do Diabo Manco, sua silhueta negra recortada contra a grande lua cheia descendo a encosta não tão íngreme.

Logo enveredou pelo caminho que levava a uma encruzilhada, uma estrada cheia de pedregulhos. O vento zunia mais forte, balançando a ramagem e a copa das árvores. Seus pés ligeiros soaram solitários durante algum tempo, até que subitamente deixaram de ser solitários, pois outros passos começaram a soar atrás de si, passos cambaleantes e trôpegos.

Agora a luz do plenilúnio incidia em cheio no caminho, e Ambrósio Quaresma sentiu um calafrio quando avistou o vulto atrás de si, seguindo-o como se fosse sua sombra.

- Vagabundo da noite! Por que me segues? O que queres de mim, safado? – gritou Ambrósio rispidamente.

Como resposta a sua interpelação, uma voz roufenha, gutural, rouca, soou sinistra:

- Safado e vagabundo és tu, verme do lodo da vida! Devolva-me o que roubaste de mim!...Quero-o de volta, ele, O CORAÇÃO QUE VOCÊ FURTOU DO PEITO DO MEU CADÁVER!

Quando Ambrósio viu o buraco no peito do vulto, quando olhou aquele rosto espectral, quando reconheceu aquela voz cavernosa, num átimo ele compreendeu tudo e de súbito veio-lhe à lembrança o som de atabaques e tambores de um saravá num terreiro de macumba que participara, quando menino; reconhecera a voz e por fim lembrou-se de quem pertencia o nome da lápide: ZÉLIO SILVA DAS CRUZES...UM ANTIGO PAI-DE-SANTO E MACUMBEIRO VERSADO NAS ARTES DO INFERNO, E QUE MORRERA HAVIA ALGUM TEMPO!

Ambrósio gritou e gritou até perder os sentidos. Na verdade, um ataque cardíaco provocado pelo pavor extremo o fulminara; não houve, pois, tempo para se arrepender e saber que nunca se deve furtar o coração de um cadáver, porque o cadáver pode ser de algum espírito de malíssima índole!

FIM

 

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